Falando de Cinema
Introdução
Estes
apontamentos descrevem, discutem e prestam
homenagem a alguns dos filmes que melhor
captam a maravilha do cinema. Os filmes aqui
reunidos são aqueles que consideramos, na
forma imprecisa destas coisas, terem tido o
impacto mais significativo no cinema e no
mundo.
A viagem começa em
1902, quando o Georges Méliès, um quase
desconhecido artista francês, apresentou o
último filme da série de curtas-metragens
mudas com que vinha entretendo os seus
compatriotas. Tratava-se de uma viagem pelo
espaço, intitulada Le voyage dans la lune
(Viagem à Lua), que teve um enorme e
imediato sucesso – não só em França, mas em
todo o mundo. (Infelizmente para Méliès,
grande parte desse sucesso deveu-se ao facto
de o filme ter sido incessantemente
pirateado por rivais). A sua popularidade
fez mais do que qualquer outro filme desse
tempo para garantir o cinema como a
principal forma de arte da época. Nenhum
filme anterior tinha sido tão espetacular;
nenhum tinha uma história tão complexa.
Comboios, pânico e propaganda
Na altura em que Méliès se lançava na aventura lunar, o cinema já se tinha estabelecido como um passatempo pouco recomendável, para ser desfrutado em teatros e feiras. Para encontrar os seus verdadeiros primórdios, é necessário recuar mais um pouco – até Paris, mas desta vez com dois homens do espetáculo no centro das atenções. A dupla, os irmãos Auguste e Louis Lumière, teve o seu momento em 1896. Foi nessa altura que, depois de terem realizado exibições em grande escala dos seus filmes no ano anterior, mostraram pela primeira vez ao público francês L'arrivée d'un train en gare de La Ciotat – também conhecido como “A chegada de um comboio”. Eram apenas 50 segundos de filmagem em que, como o título sugere, um comboio a vapor entrava na estação de La Ciotat, filmado a partir da plataforma adjacente. A visão fez com que todos os que estavam a assistir fugissem em pânico, convencidos de que estavam prestes a ser atropelados pela locomotiva em alta velocidade – ou pelo menos foi essa a história que circulou após o evento. A verdade exata perdeu-se no tempo, mas ou os Lumière dominaram rapidamente a capacidade da nova forma de arte de fazer com que o ecrã se parecesse com a vida, ou tinham um talento impressionante para a propaganda promocional. Talvez seja indiferente – ambas as capacidades têm um lugar central na história do cinema.
Mas talvez seja
necessário recuar ainda mais. Afinal, antes
de os irmãos Lumière aterrorizarem o seu
público, muitos outros foram os pioneiros do
cinema. Há que tirar o chapéu ao inventor
norte-americano Thomas Edison, que exibiu
filmes de gatos a lutar boxe e de homens a
espirrar para clientes individuais alguns
anos antes dos Lumière, e ao fotógrafo
inglês Eadweard Muybridge, cujos estudos de
1880 de seres humanos e animais em movimento
foram um prefácio vital para a imagem em
movimento.
L'Arrivée d'un train en gare de La Ciotat
(versão restaurada)
Irmãos Auguste e
Louis Lumière, 1896
Contar histórias
De facto, a história
do cinema remonta, sem dúvida, aos tempos
pré-históricos, aos antepassados humanos que
se aconchegavam à volta de uma fogueira,
enquanto um deles usava a luz para projetar
sombras na parede e ilustrar histórias de
feras temíveis ou de heroísmo improvável.
Quando o público se acomoda nos seus lugares
para assistir a um êxito de bilheteira
caríssimo, alimentado por efeitos, num ecrã
IMAX imponente, está de novo à volta dessa
fogueira. O cinema do século XXI continua a
ser uma forma de contar histórias com
palavras e imagens, dando a essas imagens
uma vida credível.
Estes apontamentos
são uma tentativa de construir uma narrativa
da história do cinema a partir dos próprios
filmes, fazendo uma viagem por uma mão cheia
de filmes desde Méliès até ao século
seguinte e mais além. Iremos discutir a
origem de um filme, a sua inspiração
e a forma como foi feito, documentando os
homens e mulheres cujo talento o moldou.
É uma história que
atravessa o tempo. Na era do silêncio, os
primeiros homens e mulheres exploraram as
possibilidades das imagens em movimento. A
partir daí, a história desliza para as
décadas de 1930 e 1940, os anos dourados em
que os cinemas estavam em todas as ruas
principais e os filmes eram amados e
atraentes para as massas; a era de estrelas
de cinema como Humphrey Bogart, Katharine
Hepburn e James Stewart. Na década de 1950,
cineastas da Europa, Índia e Japão criaram
uma série de obras-primas que ainda hoje são
aclamadas; foi a época de Henri-Georges
Clouzot, Akira Kurosawa, Yasujirô Ozu,
Nicholas Ray e Satyajit Ray. Nas décadas de
1960 e 1970, uma nova geração tomou posse e
quebrou os moldes estabelecidos. E então a
história do cinema chega ao presente, onde
os filmes são feitos com tecnologia que
teria sido material de ficção científica
mesmo há 10 anos, mundos inteiros criados
com o apertar de um botão.
Imersão feliz
A beleza dos filmes é
que cada indivíduo tem uma forma diferente
de os ver e um caminho diferente para os
amar. O escritor e jornalista Danny Leigh
que passou grande parte da sua vida adulta
nas salas de cinema à procura de filmes que
lhe pudessem dar aquela sensação de imersão
feliz que o viciou em criança, refere:
"Sento-me enquanto as luzes se apagam e
volto a ser o miúdo de sete anos que se riu
com Harpo Marx num ecrã montado na festa de
anos de um amigo; ou que escapou a um Natal
em família aos 10 anos para ligar o velho
televisor lá em cima e descobriu que estava
a passar Citizen Kane; ou cuja mente
foi completamente desfeita aos 14 anos pelos
filmes sombrios e enervantes de David Lynch.
Esses momentos vivem sempre que vejo um
filme".
Algumas décadas
depois de “Viagem à Lua”, com um Méliès
sem sorte a vender bugigangas na estação de
comboios de Montparnasse, este “jovem meio
de comunicação” recebeu uma alcunha que
ainda hoje se aplica: a "Sétima Arte",
depois da arquitetura, da pintura, da
música, da escultura, da dança e da poesia.
O seu autor foi Ricciotto Canudo, um
académico italiano. Para Canudo, o poder do
cinema era o facto de reunir cada uma das
grandes formas de arte do passado numa só –
ver filmes era experimentar todas as seis
formas de arte mais antigas ao mesmo tempo.
O cinema evolui
Tantos anos mais
tarde, a pura adrenalina sensorial do cinema
ainda é suficiente para arrebatar o público,
no melhor sentido da palavra. É difícil
imaginar o ranger e o crepitar dos primeiros
anos do cinema a atrair um espectador para o
ecrã da mesma forma que um filme o faz agora
– mas, como mostra o filme de comboio dos
Lumières, os filmes podiam fazer com que o
público os considerasse reais desde o
início.
Ver como os filmes
evoluíram enquanto forma de arte é uma das
grandes alegrias de ser um amante de cinema.
Por vezes, os avanços podem ser óbvios: as
importantes passagens do silêncio para o som
e do preto e branco para a cor. Noutras
ocasiões, as revoluções foram mais subtis, à
medida que os ofícios da produção
cinematográfica – cinematografia, montagem –
ganharam vida própria.
O contexto histórico
mais alargado em que os filmes foram feitos
também tem de ser considerado – quando se
fala de filmes, nunca se está a falar apenas
de filmes. Quando se mergulha na história do
cinema, não se pode deixar de lidar com a
história em geral. Se olharmos para o último
século de filmes, vemos a vida real a
atravessá-lo como os anéis de uma árvore.
Puramente como cinema, é difícil exagerar o
impacto de Godzilla, o monstro
cinematográfico que aterrorizou a baía de
Tóquio em 1954 – e o que era Godzilla senão
o trauma nuclear do Japão transformado em
carne escamosa? Não é preciso ser um amante
de cinema para citar uma frase de Some
Like It Hot ("Quanto mais Quente
melhor") – mas quão diferente teria sido um
filme se o seu realizador austríaco, Billy
Wilder, não tivesse sido forçado, como
tantos outros cineastas europeus, a fugir
para os EUA quando os nazis tomaram o poder?
A Revolução Russa, a Guerra Fria, a era
hippie, o feminismo, a era dos computadores
– todos os grandes momentos da história
mundial estão algures no ecrã.
Tudo isto num
meio que começou na feira, a um passo do
circo, e que passou grande parte da sua
existência como uma desculpa para jovens
casais se sentarem juntos no escuro. O facto
de o que estava a acontecer no ecrã ter
ascendido a um entretenimento tão glorioso
já era suficientemente improvável. O facto
de se ter tornado arte é talvez ainda mais
extraordinário.
Uma experiência coletiva
Em muitos aspetos,
são as suas contradições que fazem dos
filmes aquilo que eles são. Como explicar de
outra forma o efeito que têm no seu público?
Quando um espectador se apaixona por um
filme, pode parecer que foi feito para ele e
só para ele, como uma mão que se estende do
ecrã. E, no entanto, se alguma vez viu uma
grande comédia no meio de uma sala de cinema
cheia, ou se se assustou com um filme de
terror ao lado de duzentas pessoas que
faziam exatamente o mesmo, sabe que os
filmes foram feitos para serem vistos em
público, que o cinema cresceu como uma
experiência para ser partilhada com outros.
Ao longo dos anos, os
filmes têm sido vistos de muitas formas
diferentes. No início, eram novidades, doses
baratas de sensações. Depois, foram momentos
de escapismo impossivelmente glamorosos,
cujas estrelas brilhavam a preto e branco.
Evoluíram para relatos profundos da condição
humana, realizados por grandes autores.
Hoje, são muitas vezes espetáculos
extremamente caros, concebidos para fazer
ainda mais dinheiro para os estúdios e as
empresas. Fazem-nos sentir que nos
escondemos por detrás dos olhos das pessoas
no ecrã, tudo isto não é muito diferente de
um sonho ou de um ato de hipnose, até que
voltamos a tropeçar na luz, talvez
compreendendo algo novo sobre nós próprios,
talvez apenas com dores de tanto rir.
Um mundo de escolhas
Alguns dos filmes que
iremos abordar nestes apontamentos foram
adorados pelos críticos; outros foram puros
prazeres para o público. Muitos não foram
nem uma coisa nem outra, fracassos que as
gerações posteriores perceberam que eram
obras-primas. O género não entra em linha de
conta. Os thrillers convivem com os
westerns, o romance com o neorrealismo, e
todos têm de dar lugar a um musical
ocasional.
A língua e a nacionalidade também não são motivo de preocupação. Hollywood está aqui bem representada, mas sempre houve um grande mundo para além de Beverly Hills, e nenhum livro sobre cinema que valha a pena poderia ignorar esse facto. The White Ribbon (2009) merece tanto o seu lugar como Jaws (Tubarão, 1975). Haverá, naturalmente, omissões e inclusões que confundirão cada leitor. Parte da beleza do cinema é que nunca há duas opiniões iguais sobre os filmes. Se esta fosse apenas uma lista dos nossos preferidos, haveria algumas diferenças em relação à lista que se segue. Poder-se-ia pensar que o trabalho de seleção seria mais fácil se o critério fosse "grandeza", mas na verdade, isso é igualmente subjetivo. Em vez disso, estas escolhas são como um atlas de influência, uma coleção de pontos de referência, e a esperança é que, se faltar o filme preferido de alguém, haja outros que o compensem. E também, esperemos, que haja pelo menos um filme que os leitores escolham para ver, pela primeira vez.