Falando de Cinema
O Gabinete do Doutor Caligari, 1920
Todos os segredos
Das Cabinet des Dr.
Caligari (O Gabinete do Dr. Caligari) tem
sido descrito como a primeira longa-metragem
de terror, e é fácil ver o seu legado no
cinema moderno, mas não pelas razões óbvias.
A sua engenhosa cenografia – ainda
vanguardista no uso de ambientes teatrais
palpavelmente irreais – é a mais marcante
das suas características. No entanto, são
outros elementos, mais subtis, do inovador
thriller psicológico de Robert Wiene que se
tornaram elementos fixos da narrativa
cinematográfica.
O "narrador não
fiável" era há muito um elemento básico da
literatura, desde o tempo do antigo
dramaturgo grego Aristófanes, mas ainda não
tinha sido utilizado no cinema. Caligari é
pioneiro no uso deste dispositivo na
personagem de Francis (Friedrich Fehér). A
história que Francis conta começa,
inocentemente, com um triângulo amoroso,
quando dois amigos competem pelos afetos da
mesma mulher – mas, claro, nem tudo é o que
parece.
Os argumentistas do filme,
Hans Janowitz e Carl Mayer, escreveram
originalmente a história como uma acusação
ao governo alemão durante a Primeira Guerra
Mundial, com Caligari como um vilão simples
que leva um inocente a cometer um homicídio
sonâmbulo. No entanto, à medida que o filme
se aproximava da produção, a história
transformou-se em algo mais complexo,
levando possivelmente a uma outra estreia no
cinema: o final com reviravolta.
Das Cabinet des Dr. Caligari,
Robert Wiene, 1920
Abrir o armário
Janowitz e Mayer
inspiraram-se numa história do século XI
sobre um monge que exercia uma estranha
influência sobre um homem que estava na sua
casa. No argumento, o monge tornou-se um
médico, que Francis e o seu rival amoroso
Alan (Hans Heinrich von Twardowski)
encontram numa feira da aldeia.
O Dr.
Caligari (Werner Krauss) aparece pela
primeira vez como um artista de feira que
abre o seu suposto gabinete – um caixão com
outro nome qualquer – para revelar o
fantasmagórico Cesare (Conrad Veidt) deitado
lá dentro. Caligari, o "mestre" de Cesare,
afirma que o seu protegido "conhece todos os
segredos" e convida o público a fazer uma
pergunta. Um Alan visivelmente abalado,
pergunta: "Quanto tempo viverei?" – ao que
Cesare responde: "Até ao amanhecer". E aqui
vemos outro exemplo de um dispositivo de
filme de terror retirado de inúmeros contos:
o tolo que tenta o destino. O infeliz Alan é
encontrado morto na manhã seguinte.
Estilo expressionista
O visual e o estilo
do filme foram fortemente influenciados pelo
lendário Max Reinhardt, diretor do Deutsches
Theatre em Berlim. O seu estilo
antirrealista, inspirado pelo movimento
artístico expressionista do início do século
XX, abraçou a artificialidade do cenário
teatral e manipulou a escuridão em vez da
luz para criar faixas de claro-escuro,
estabelecendo uma atmosfera de mistério e
inquietação.
Wiene emprega
cuidadosamente a iluminação para sugerir que
se trata apenas de um melodrama estranho –
uma noção reforçada pelo uso frequente de
grandes planos sinistros, sobretudo do
aparentemente louco Caligari, para persuadir
o público de que está a assistir a uma
história simples de herói e vilão. No
entanto, quando é revelado que a perspetiva
de nenhuma personagem pode ser tomada pelo
seu valor facial, de repente os ângulos e
cenários estranhos e distorcidos do design
de produção começam a fazer sentido. São
parte integrante da história e não apenas um
estilo inquietante; os cenários de Walter
Reimann, Walter Röhrig e Hermann Warm
parecem retratar um mundo inteiro
enlouquecido.
Uma das razões pelas
quais O Gabinete do Dr. Caligari perdurou é
o facto de, antecipando Psicose de
Hitchcock, ser o primeiro filme a levar o
público a entrar na mente de um louco. O seu
horror ressonante deriva do nosso medo da
máscara de sanidade que até os indivíduos
mais perturbados podem usar para enganar os
que os rodeiam.
Robert Wiene
Robert Wiene nasceu em
1873 em Breslau,
Polónia. Em 1913,
escreveu e realizou uma
curta-metragem, Die
Waffen der Jugend (As
Armas da Juventude), que
foi a primeira de 20
longas e
curtas-metragens que
viria a realizar na era
do cinema mudo. Depois
de uma prolífica
carreira cinematográfica
na Alemanha, Wiene fugiu
do regime nazi no início
da década de 1930 e
mudou-se para França.
Morreu de cancro durante
a rodagem do seu último
filme, Ultimatum (1938),
que foi completado, sem
créditos, pelo seu
colega emigrado Robert
Siodmak.