Falando de Cinema
Luzes da Cidade, 1931
Amanhã os pássaros cantarão
O filme Luzes da Cidade de Charlie Chaplin – que ele escreveu, dirigiu e protagonizou – foi um dos últimos grandes filmes do cinema mudo, reconhecido por muitos como uma das melhores comédias de todos os tempos. Apesar de ter sido lançado em 1931, quatro anos depois do primeiro filme sonoro/falado, The Jazz Singer, Chaplin fez de Luzes da Cidade um filme mudo com apenas alguns efeitos sonoros distorcidos e uma banda sonora com a sua própria música.
O vagabundo e a rapariga das flores
A história
começa numa grande cidade, onde o Vagabundo
de Chaplin está a fugir de um polícia que
ameaça prendê-lo por vadiagem. Escapando
através de um carro, encontra uma pobre
florista cega (interpretada por Virginia
Merrill). Compra-lhe uma flor com a sua
última moeda e a rapariga, ao ouvir o som da
porta de um carro de luxo, acredita que ele
é um homem rico.
Não sendo julgado
como um vagabundo por esta rapariga cega, o
Vagabundo apaixona-se por ela e quer ser o
benfeitor rico e bonito que ela imagina que
ele seja. Ele decide resgatá-la da sua vida
de pobreza e, quando ouve falar de uma
operação que lhe devolverá a visão, procura
desesperadamente formas de angariar o
dinheiro para a financiar, desde varrer as
ruas até ser espancado numa luta a prémio.
O Vagabundo também salva um milionário
que está a ameaçar suicidar-se depois de a
mulher o ter deixado. Em troca, o milionário
oferece ao Vagabundo mil dólares para ajudar
a rapariga. Infelizmente, o milionário só vê
o Vagabundo como um amigo quando está sob o
efeito do álcool. Quando o milionário fica
sóbrio, acusa o Vagabundo de ter roubado o
dinheiro. Em fuga, o Vagabundo dá à rapariga
o dinheiro para pagar a operação à vista,
mas é capturado e atirado para a prisão.
City Lights,
Charlie Chaplin, 1931
https://www.youtube.com/watch?v=TkF1we_DeCQ
Um encontro comovente
Finalmente, é
libertado da prisão e encontra-se à porta da
loja de flores. Na montra, a rapariga está a
arranjar flores. Foi operada e já consegue
ver. Cheia de bondade para com o Vagabundo,
que agora está vestido com roupas surradas,
a rapariga apanha a flor que lhe foi
arrancada pelos miúdos da rua e, quando as
suas mãos se tocam, ela reconhece-o
subitamente – muito diferente do príncipe
elegante que ela poderia ter imaginado. O
Vagabundo olha ansiosamente para os olhos da
florista, outrora cega, e pergunta: "Já
consegues ver?" "Sim", responde ela, "já
estou a ver".
Esta troca pungente é
um dos diálogos mais famosos da história do
cinema – ainda mais revelador porque vem da
era do silêncio – e em muitos aspetos é
emblemático de todo o filme. Não é apenas o
Vagabundo que a rapariga vê pela primeira
vez, mas a verdade, e o público tem de a ver
também. No mundo barulhento e luminoso da
cidade moderna, as pessoas pequenas, os
oprimidos e os solitários são esquecidos e
deixados de lado. É apenas através da pureza
do silêncio, da simplicidade e da cegueira
que as pessoas podem recuperar os seus
sentidos e aprender a ver claramente de
novo.
A esperança do amanhã
O filme tem uma mensagem conservadora e sentimental – alguns podem até dizer piegas – mas não há dúvida de que tocou no coração de muitos no seu lançamento, apenas dois anos após o Crash de Wall Street. Os tempos eram difíceis para muitos milhões de pessoas, os pobres nos EUA começavam a sentir o impacto da Grande Depressão e os suicídios atingiam tanto os ricos como os menos abonados à medida que a crise se agravava. Embora o filme não ofereça receitas para a ultrapassar os maus momentos, o que fez, inteligentemente, foi dar um vislumbre de esperança. Depois de salvar o milionário do suicídio no rio, o Vagabundo incita-o a ter esperança. "Amanhã os pássaros vão cantar", diz ele. Por muito sombrias que as coisas pareçam hoje, as pessoas devem agarrar-se à ideia de que amanhã pode haver alegria – parece ser esse o cerne da mensagem do filme.
Final feliz?
Quando a
rapariga das flores vê finalmente o
Vagabundo como ele realmente é, Chaplin, o
realizador, não os faz cair imediatamente
nos braços um do outro em sinal de
reconhecimento. Não sabemos se a florista o
vai abraçar ou rejeitar, porque ele é tão
diferente do homem da sua imaginação. Não há
um final feliz.
Ao mesmo tempo que o
olhar cativante do Vagabundo provoca paixão,
também devolve o filme a um nível cómico,
distanciando o público da dor da sua
possível rejeição. Mas quando a rapariga das
flores olha de volta para ele e os
espectadores veem os pensamentos a
revirarem-se por detrás dos seus olhos e as
ténues chamas de esperança, isso é
suficiente. Não é claro que esperança é essa
– que ela encontrará a sua verdadeira
felicidade com um homem tão maltrapilho, ou
que ambos se afastarão, mais sábios, mas
satisfeitos. Tudo o que importa é que há
esperança, a esperança inspirada pelo
pensamento de que os pássaros cantarão
amanhã, aconteça o que acontecer.
Charlie
Chaplin
O ator e
realizador Charlie
Chaplin foi a maior
estrela do cinema mudo.
Nascido em Londres em
1889, sobreviveu a uma
infância marcada pela
pobreza. O seu pai
alcoólico abandonou a
sua mãe cantora, que
mais tarde foi internada
num asilo. Estas
experiências iniciais
inspiraram a personagem
do vagabundo
marginalizado. Ainda
adolescente, Chaplin
juntou-se a uma trupe de
circo e um empresário
levou-o para os EUA. Aos
26 anos, já era uma
estrela com a sua
própria companhia de
cinema. Realizou uma
série de filmes mudos de
sucesso antes do seu
primeiro filme falado, a
sátira O Grande
Ditador. Morreu em
1977.