Falando de Cinema

Stagecoach, 1939

"Stagecoach" é um filme em que se elevam duas grandes carreiras, Wayne e Ford.Embora já tivesse participado em muitos filmes, como figurante, duplo e depois como ator em filmes B, este foi o primeiro papel principal de John Wayne num filme de John Ford. Para Ford, era o regresso, após alguns anos, a um género sobre o qual as suas ideias tinham crescido – o género norte-americano por excelência em que realizaria muitos dos seus melhores filmes. Com o prestígio de Ford como realizador e o prestígio de Wayne como estrela, realizariam filmes icónicos e estabelecer-se-iam como uma das grandes parcerias da história do cinema.

Juntaram-se num momento propício da carreira de Ford. Com 45 anos, Ford tinha realizado os seus primeiros filmes mudos (dez!) em 1917. Tinha tido um grande sucesso e ganhou um Óscar pela realização de " The Informer " em 1936. Mas agora chegavam os seus anos de triunfo. Nenhum realizador da era do som fez tantos filmes de sucesso em tão pouco tempo como Ford. No mesmo ano de "Stagecoach", 1939, realizou "Young Mr. Lincoln" e "Drums Along the Mohawk", e depois fez "The Grapes of Wrath" e "The Long Voyage Home" em 1940 e "Tobacco Road" e "How Green Was My Valley" em 1941, arrecadando nesse período três nomeações e dois Óscares para realização.

Ford há muito que seguia o percurso de John Wayne, desde os tempos em que ele se chamava Marion Morrison, apelidado de Duke, e era jogador de futebol americano da USC, trabalhando no verão na 20th Century-Fox para arrecadar mais alguns dólares. Na década anterior a "Stagecoach", Wayne trabalhou em cerca de 40 westerns, desde figurante a ator principal, sem se distinguir. Ford pensou que ele tinha as qualidades de uma estrela e decidiu que Wayne era o indicado para o papel principal de Ringo Kid em "Stagecoach". O estúdio opôs-se firmemente ao casting, exigindo um ator de nomeada. Ford insistiu terminantemente e Wayne causou uma impressão que mudaria a sua vida e lhe valeria mais tarde um lugar num selo postal dos Estados Unidos da América.

Personagens heterogéneos

Visto hoje, "Stagecoach" pode não parecer muito original. Isso porque influenciou inúmeros filmes posteriores em que uma mistura de personagens se encontra por acaso num determinado contexto e é obrigada a adaptar-se às provocações. Por vezes, o filme parece uma antologia de clichés comuns: uma mulher a entrar em trabalho de parto enquanto o médico ordena: "Água a ferver! Água quente! E muita!" Conhecerá uma prostituta com um coração de ouro, um banqueiro perverso, um jogador astuto, uma senhora da alta sociedade do sul dos EUA, um fora-da-lei à procura de vingança e ajuste de contas, apaches selvagens e assassinos, uma mulher índia sensual, um pequeno vendedor ambulante introvertido e uma cena de perseguição com um tolo condutor de diligências a fazer das tripas coração. Verá saloons, currais, vastas paisagens, fogueiras e a Cavalaria dos EUA – que dá o sinal de partida antes de ir em socorro, etc.

Apesar da familiaridade destas convenções, "Stagecoach" prende a nossa atenção sem esforço e tem o ritmo elegante de uma sinfonia. Ford não desperdiça a sua ação e violência numa tentativa de se vender para aqueles que têm pouca atenção, mas conta uma história, durante a qual aprendemos a conhecer as personagens e a investir nelas. Não oferece todas as cenas principais à mesma grande estrela. A principal estrela é Claire Trevor, como Dallas, a dama do prazer.

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Stagecoach
John Ford, 1939

Uma viagem desconfortável

Trevor, era a estrela, mas Ford deu quase o mesmo peso aos outros passageiros da diligência, todos interpretados por atores que seriam familiares ao público do cinema: Andy Devine como o tolo condutor da diligência, John Carradine como o elegante jogador, Thomas Mitchell como o alcoólico Doc Boone, Louise Platt como a mulher grávida do soldado e Donald Meek como o introvertido Sr. Peacock, um caixeiro-viajante que improvavelmente usa um chapéu axadrezado de gatinho no Velho Oeste. Quando se alinham frente a frente, Ringo Kid senta-se no chão entre eles, mas Ford nunca o enquadra de forma a parecer mais baixo.

Confinados durante grande parte do filme no interior da diligência, estes talentosos atores criam uma comunidade fascinante à medida que revelam gradualmente as suas razões ocultas para viajarem com grande desconforto através do perigoso território desértico do Arizona. Ringo Kid, a personagem de Wayne, é um assassino procurado que está a ser levado para a prisão por um U. S. Marshall (George Bancroft). Enquanto os outros evitam a prostituta Dallas, Ringo insiste em dar-lhe um copo de água e um lugar à mesa, e a sua cortesia é viril e de bom coração. É claro que ele se apaixona por ela, e isso inspira algumas cenas e aponta ao típico final feliz.

Montagem simples

Diz-se que Orson Welles terá visto "Stagecoach" umas 40 vezes antes de fazer "Citizen Kane". Parece um exagero. Os dois filmes não são muito parecidos. O que é que Welles aprendeu com ele? Talvez, acima de tudo, um estilo de montagem simples. Ford certificou-se, através do elenco e dos diálogos, de que o objetivo de cada cena era claro e, depois, demorou-se exatamente o tempo suficiente para o conseguir. Nada parece supérfluo. Quando é reduzido o ritmo do filme, como numa canção cantada por Yakima (Elvira Rios), a esposa de um chefe de posto avançado, entendemos isso como a calma antes de uma tempestade. (Howard Hawks usa uma canção calma de Dean Martin da mesma forma em "Rio Bravo").

A longa perseguição da diligência pelos apaches faz sempre sentido e permite que a câmara acompanhe o trabalho das acrobacias dos cavaleiros. Veja-se esta acrobacia extraordinária: Um apache salta do seu próprio cavalo para defronte da diligência, montando os cavalos da frente. É atingido. Cai entre os cavalos no chão, e os cavalos e a diligência passam por cima dele. Aqui não há CGI; ele arrisca a sua vida.

Um fora-da-lei que é o herói

Wayne é o herói do filme, mas não um "herói de ação". Ele era manifestamente um fora-da-lei; o "Ringo Kid" cuja fotografia aparece nos cartazes como "Procura-se". Mas nunca sugere maldade e parece preparado para ser levado para a prisão, apesar de ter muitas oportunidades de escapar. Há a sugestão de que ele fica com a diligência porque é necessário para proteger os seus passageiros, especialmente as duas mulheres. Vemos aqui a extraordinária graça física de Wayne e a sua capacidade de ternura, e compreendemos porque é que Ford o escolheu mais tarde como "The Quiet Man" de 1952.

Duas cenas em particular: Wayne em primeiro plano à esquerda, encostado a uma parede, enquanto vê Dallas afastar-se dele ao longo de um corredor. Observe a sua linguagem corporal. A forma como ele olha para ela e depois se endireita e a segue. E, mais tarde, repare na iluminação e composição de Ford quando Dallas, em primeiro plano, ao luar, junto a uma vedação, está sozinha e Ringo Kid, em segundo plano, com o fumo da sua cigarrilha iluminado como pano de fundo, se aproxima dela.

Esta foi uma filmagem de estúdio. Mas a maior parte do filme é filmado no Monument Valley, reserva navajo situada entre o Arizona e o Utah, o local preferido de Ford, com os seus pilares de rocha, formados pela erosão durante milhares de anos a enquadrar a pequenez dos homens. Ford regressava vezes sem conta ao vale, onde os seus elencos e equipas viviam em tendas e eram alimentados por uma carroça; valorizava a distância dos executivos de estúdio intrometidos. Nesse aspeto era um ditador e, naquela vastidão, a sua palavra era lei.

As atitudes do filme em relação aos nativos americanos são pouco esclarecedoras. Os apaches são vistos simplesmente como selvagens assassinos, onde não há qualquer sugestão de que os homens brancos tenham invadido as suas terras. Ford partilhava esta visão simples com inúmeros outros realizadores de westerns e, se era rude em 1939, foi ainda mais em "The Searchers" (1956), a maior colaboração Ford/Wayne. Só no seu último filme, "Cheyenne Autumn" (1964), é que ele se aproxima de ideias mais humanas.

Talvez devido à sua longa associação com Wayne, Ford é muitas vezes visto como um conservador. Na verdade, diz-se que era um liberal assumido, o porta-estandarte contra a tentativa de Cecil B. DeMille de impor um juramento de lealdade à Associação de Realizadores durante a chamada “caça às bruxas” de McCarthy entre 1950-57. Ford não era racista, nem Wayne, mas fizeram filmes que, infelizmente, não foram muito iluminados. Em "Stagecoach", no entanto, bate um coração humanitário: Nenhum dos ocupantes da carruagem é tomado como garantido ou descartado casualmente. A todos eles é dado todo o peso da sua dependência mútua. Nesse aspeto é um western muito civilizado, que contestando o preconceito generalizado da sociedade norte-americana, é uma crítica às assimetrias da organização social construída pelos colonos europeus, brancos e ignorantes.

John Ford, Realizador
John Ford, cineasta norte-americano nascido no estado do Maine, em 1894, venceu quatro Oscars de melhor diretor, e foi eleito um dos mais importantes realizadores de cinema de todos os tempos pela Entertainment Weekly. É conhecido, principalmente, mas não só, pelos seus westerns. Alguns dos seus filmes são presenças assíduas entre as escolhas dos cinéfilos de todo o mundo. De facto, filmes como Stagecoach , Young Mr. Lincoln, ou The Searchers, são frequentemente citados na história do cinema.
Faleceu em Plam Desert na Califórnia em 1973.