Falando de Cinema

O Mundo a seus Pés, 1941

Não creio que nenhuma palavra possa explicar a vida de um homem", diz Charles Foster Kane, o imponente magnata da imprensa, protagonista de Citizen Kane. E, no entanto, a genialidade deste filme – escrito, protagonizado e realizado por Orson Welles com apenas 25 anos – é que faz exatamente isso: utiliza numa única palavra que capta a origem e a essência do Charles Kane e provoca o público com ela durante quase duas horas, antes de oferecer uma pista enigmática sobre o seu significado.

Filmado em segredo para evitar tentativas legais de bloquear a produção, e ambiguamente anunciado como uma história de amor, Welles preparou-se para problemas aquando do seu lançamento. A personagem de Kane não só era baseada numa pessoa viva, como era extremamente poderosa.

Citizen Kane é um mistério de homicídio sem homicida, sendo famoso por abrir com Kane, em idade avançada, como um homem moribundo. Começar o filme no fim é apenas o primeiro dos muitos dispositivos temporais inovadores de Welles. A narrativa muda então para uma de notícia de TV que recorda a vida e os feitos do grande Kane. Mostra a construção da sua majestosa casa, Xanadu, uma mansão que ele enche de arte (O suficiente para dez museus – o saque do mundo). Mostra a influência de Kane a espalhar-se pelos Estados Unidos e depois pelo mundo, enquanto ele se encontra numa varanda ao lado de Adolf Hitler (cortando para uma imagem de Kane a declarar, pomposamente, "Podem acreditar na minha palavra, não haverá guerra"). Seguem-se as mulheres da sua vida e a forma como um caso ilícito interrompeu a sua carreira política. O público vê a sua ascensão, queda e retirada da vida pública.

O enigma de Rosebud

Quando o noticiário termina, o produtor não está satisfeito: quer saber quem foi Charles Foster Kane, não o que ele fez, e envia o repórter Jerry Thompson (William Alland) para descobrir o significado da palavra que Kane pronunciou no seu último suspiro: "Rosebud". Nesta altura, Citizen Kane torna-se essencialmente em dois filmes. O enquadramento é a vida de Kane contada pelos seus amigos e inimigos, enquanto Thompson enfrenta esse extraordinário enigma envolto num enigma maior do que a vida. Mas Welles também oferece ao público outras cenas da vida de Kane em flashback, uma técnica que lhe permitirá finalmente revelar a verdade que escapará a Thompson e a todos os outros.

Uma boa parte do sucesso artístico do filme pode ser atribuída à experiência de Welles no teatro. Citizen Kane é um filme que utiliza não só dispositivos temporais na narrativa, mas também espaciais, de tal forma que, por vezes, quase parece um filme em 3D. Numa cena inicial crucial, Thompson descobre que Kane nasceu numa família pobre que descobriu ouro nas suas terras e, como parte de um negócio, entregou o rapaz a um tutor rico. Enquanto o negócio é feito em primeiro plano, vemos o jovem Kane através da janela, brincando na neve, alheio. É um simples truque de perspetiva importado do teatro, usado para captar a tragédia que se abate sobre Kane. É o momento em que a vida que ele deveria ter levado termina.

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Citizen Kane (Original Theatrical Trailer)
Orson Welles, 1941

Planos inovadores

Welles e o operador de câmara Gregg Toland utilizaram estes dispositivos espaciais ao longo de todo o filme, uma proeza conseguida com lentes de focagem profunda e ângulos de câmara tão baixos que Kane pode aparecer, ora como um titã, ora como um gangster. Isto, por si só, era uma novidade, já que antes de Citizen Kane os cineastas raramente usavam tais planos ascendentes, pela simples razão de que poucos estúdios tinham tetos devido ao equipamento de iluminação e som. (“Uma grande mentira para colocar todas aquelas luzes terríveis lá em cima”, disse Welles). No entanto, Welles levou a sua câmara tão longe que, para uma cena em que Kane fala com o seu amigo Leland depois de perder a sua primeira eleição, foi necessário abrir um buraco no chão do estúdio.

A contribuição de Toland é uma parte vital do legado de Citizen Kane, uma vez que, embora selasse o estatuto de Welles como um dos primeiros realizadores de cinema de autor dos EUA, este foi um esforço de colaboração. Também foi vital o risco que Welles assumiu com o seu elenco e equipa de produção – para quem Citizen Kane lançou as suas carreiras no cinema. Muitos dos atores eram desconhecidos do público – vinham do grupo Mercury Theatre de Welles. O seu editor, Robert Wise, iria em breve iniciar uma carreira de sucesso na realização; e a banda sonora marcou a estreia de Bernard Herrmann, que mais tarde viria a formar uma extensa parceria criativa com Alfred Hitchcock. Mas acima de tudo, o brilhantismo do filme deve-se ao seu argumento, que Welles escreveu em conjunto com o argumentista Herman J. Mankiewicz. Embora a contribuição exata de Mankiewicz tenha sido contestada, muitas vezes por Welles, o filme tem traços extensos do estilo satírico de Mankiewicz: num momento particularmente carregado, quando o seu caso é descoberto pela mulher, Kane diz simplesmente, de forma seca: "Não fazia ideia de que tinhas este talento para o melodrama, Emily."

Semelhanças com Hearst

Apesar das discussões sobre quem escreveu o quê, é consensual que foi Mankiewicz quem primeiro teve a ideia do filme. Tendo obtido algum sucesso como escritor na era do cinema mudo, Mankiewicz tornou-se um argumentista muito procurado e foi nessa qualidade que conheceu o magnata da imprensa William Randolph Hearst e a sua amante, a atriz de cinema Marion Davies. Embora todos o negassem – incluindo Hearst, que se comportou com uma determinação muito semelhante à de Kane para destruir o filme e a reputação dos seus criadores – as semelhanças entre Hearst e Kane eram demasiado claras. É uma falácia comum dizer que o filme foi um fracasso na estreia (foi o sexto filme com maior bilheteira do ano e nomeado para nove Óscares), mas a proibição geral do vasto império mediático de Hearst assegurou que o seu sucesso durasse pouco tempo. Apesar de satirizar vários ideais, incluindo o sonho americano (Kane não vê qualquer ironia em ser um capitalista autocrático que afirma lutar pelo homem comum), o filme simpatiza com o seu objeto de estudo. Com Kane morto e Thompson incapaz de terminar a sua missão, a câmara de Welles leva o espectador através da desordem de Xanadu, onde a vasta e espalhafatosa coleção de arte de Kane está a ser arrumada.

Por fim, o plano recai sobre um brinquedo, com que Kane estava a brincar na neve à porta da cabana dos pais. Só nós e Kane sabemos que esse brinquedo representa o momento-chave da sua vida: o momento em que perdeu a inocência e a felicidade.

Orson Welles, realizador e ator
A vida de Welles espelha a de Charles Foster Kane, na medida em que foi acolhido por um amigo da família, tendo perdido ambos os pais aos 15 anos. Em 1934, começou a trabalhar em peças de rádio e, em 1937, fundou o Mercury Theater – duas coisas que lhe trariam grande notoriedade em 1938, quando a companhia apresentou War of the Worlds como um noticiário transmitido ao vivo. Welles foi abordado pelos estúdios RKO em Hollywood, onde lhe foram concedidos privilégios inéditos para um novo realizador, incluindo a versão final de Citizen Kane. O seu filme seguinte, The Magnificent Ambersons, foi destruído pela RKO, a primeira de muitas disputas criativas que assolariam a sua carreira. Morreu aos 70 anos em 1985.