Falando de Cinema

Os Rapazes da Geral, 1945

Entre os muitos grandes marcos do cinema francês, Les enfants du paradis (Os Rapazes da Geral), realizado no auge da ocupação alemã em 1943 e 1944, é atualmente considerado um dos maiores. Com um argumento convincente do poeta Jacques Prévert, o realizador Marcel Carné transformou uma história passada na Paris de 1830 sobre o amor de quatro homens diferentes pela enigmática cortesã, Garance num drama profundo e romântico.

O filme em si é glorioso. Mas o que torna o feito de Carné e Prévert ainda mais extraordinário é o grau de dificuldade que ultrapassaram, mesmo em França ocupada. Na prática, os materiais para cenários e figurinos eram quase inexistentes: a fruta e os pães destinados a serem usados nas filmagens eram comidos por membros da equipa meio esfomeados. Sob o olhar dos nazis e do regime francês de Vichy, todos os movimentos eram monitorizados. No entanto, a invenção - e a independência - de Carné triunfou.

Filmagens em Vichy, França

A ambição e a escala do filme exigiram um grande elenco e uma grande equipa de produção. O elenco incluía colaboradores nazis, que os produtores tinham sido coagidos a contratar. Mas o que os supervisores de Vichy não sabiam era que Carné tinha encontrado um lugar para os combatentes da Resistência entre os 1800 figurantes, usando o filme como cobertura diurna para o seu heroísmo clandestino. A equipa de produção também incluía judeus escondidos, cujas identidades foram mantidas em segredo - em particular o desenhador Alexandre Trauner e o compositor Joseph Kosma. Trauner viveu com Carné durante as filmagens sob um nome falso, enquanto o trabalho de Kosma foi creditado a Maurice Thiriet, que arranjou a música para orquestra.

Les Enfants Du Paradis
Marcel Carné, 1945

Boulevard du Crime

A montagem do gigantesco cenário do filme, que Carné construiu em Nice, no sul de França, foi uma dor de cabeça logística sem fim. Tinha 400 metros de comprimento e, embora os materiais de construção fossem escassos, Carné recriou uma rua que se assemelhava ao famoso Boulevard du Temple, em Paris, no início do século XIX. A rua foi apelidada de Boulevard du Crime devido aos melodramas policiais populares nos seus teatros de baixo nível intelectual. A certa altura das filmagens, quando se previa uma invasão do sul de França pelos Aliados, a produção foi obrigada a abandonar Nice e a mudar-se para Paris, descobrindo no regresso que o cenário tinha sido destruído pelas tempestades. O cenário teve de ser totalmente reconstruído.

Apesar destes problemas, Carné e a sua equipa conseguiram criar um filme sumptuoso e tecnicamente brilhante, e obter desempenhos inesquecíveis do elenco. A estrela, Arletty, exala fascínio sexual na sua interpretação de Garance, seduzindo os quatro homens que competem pelo seu amor.

Pretendentes históricos

Três destes pretendentes são baseados em figuras históricas reais: Jean-Louis Barrault interpreta o mímico Baptiste Deburau, que transformou o papel de Pierrot numa personagem pungente e infantil; Pierre Brasseur interpreta o ator Frédérick Lemaître; e Marcel Herrand o suave criminoso Pierre François Lacenaire. O quarto personagem, o cínico aristocrata Édouard de Montray, interpretado por Louis Salou, foi inspirado em Charles Auguste, Duc de Morny, meio-irmão de Napoleão III.

O mundo é um palco

Desde o início, o filme esbate a fronteira entre o palco e a vida real. Tudo gira em torno do espetáculo teatral da vida. Até o título do filme se refere ao balcão mais alto do teatro, conhecido como "paraíso" (na Grã-Bretanha chamam-lhe "os deuses"), onde se situam os lugares mais baratos da casa. O próprio Boulevard du Crime parece um palco, percorrido e acariciado por um vasto e desordenado exército de figuras coloridas, cortesãos e marginais. O filme abre com uma cortina de teatro que se abre à medida que a câmara desliza por um Boulevard du Crime apinhado de figurantes e entra num parque de diversões, onde outra cortina com o título "A Verdade Nua" se abre para revelar Garance a tomar banho num barril de água, visível apenas dos ombros para cima, e a olhar para o seu reflexo num espelho.

Amor fugidio

Garance envolve-se sucessivamente com cada um dos seus pretendentes: primeiro com Baptiste, o mímico, que a salva de uma falsa acusação de roubo; depois com Frédérick, que intervém com confiança depois de Baptiste perceber que Garance não pode retribuir o seu amor; em terceiro lugar, com o criminoso Lacenaire; e, finalmente, de Montray, que oferece proteção a Garance quando esta é arrastada involuntariamente para os crimes de Lacenaire.

Garance fica brevemente intrigada com os quatro homens, dando o seu afeto a cada um deles à sua maneira, mas permanece totalmente esquiva e não consegue amá-los da forma como eles a amam. Na primeira metade da história, à medida que cada um deles recebe alguma atenção da parte dela, os homens ficam satisfeitos, mas, à medida que o filme avança, o domínio que ela exerce sobre cada um deles muda as suas vidas.

Desilusão final

Na segunda metade do filme, a insatisfação dos pretendentes gera ressentimento. Frédérick realiza o seu sonho de representar Otelo, pois compreende finalmente a dor do ciúme. Para Lacenaire, a história termina em tragédia, pois morre no cadafalso por ter matado Montray. Também para Garance não há uma resolução feliz: o homem que finalmente lhe apaixona – Baptiste – acaba por estar fora do seu alcance.

Grande parte deste drama desenrola-se perante os olhos dos "rapazes da geral", o público da classe operária nos lugares baratos. São as personagens mais barulhentas da história, como o público do cinema, mais afastado do palco, mas também o mais exigente. O público da geral clama por entretenimento. Estão desejosos de ver sofrimento e dor. Como diz o pai de Baptiste, "um pontapé no traseiro, se bem dado, é uma gargalhada certa". Também querem novidades. Mas "a novidade", diz ele, "é tão velha como as colinas".

Marcel Carné, Realizador
Nascido em Paris em 1906, Marcel Carné começou a sua carreira no cinema como crítico, enquanto trabalhava nos tempos livres como operador de câmara em filmes mudos. Em 1931, já realizava as suas próprias curtas-metragens. Em 1936, Carné juntou-se pela primeira vez ao poeta surrealista Jacques Prévert no filme Jenny. Durante a década seguinte, a dupla realizou uma série de filmes "realistas poéticos", lançando um olhar fatalista sobre a vida de personagens à margem da sociedade, o que consagrou Carné como uma estrela do cinema francês. Na década de 1950, a reputação de Carné foi eclipsada quando a geração mais jovem da Nouvelle Vague  francesa exigiu um estilo menos artificial. No entanto, continuou a ser muito respeitado pelos seus colegas realizadores, e François Truffaut disse uma vez que "desistiria de todos os meus filmes para ter realizado Les enfants du paradis (Os Rapazes da Geral)". Carné continuou a fazer filmes até à década de 1970. Morreu em 1996.