Falando de Cinema
Às Portas do Inferno, 1950
Rashomon, de Akira Kurosawa, é um thriller que gira em torno de dois possíveis crimes ocorridos numa clareira isolada: a violação de uma mulher (Machiko Kyô) e a morte violenta do marido samurai da mulher (Masayuki Mori). A verdade, no entanto, é difícil de alcançar; está emaranhada num nó de histórias contadas por quatro testemunhas oculares. Em quem é que o público confia para contar a verdade? A alegada vítima de violação? O bandido acusado de ter cometido o crime? O fantasma do homem morto? O lenhador que encontrou o corpo? De quem é a história?
Debaixo do portão
O plano de
abertura do filme é o portão da cidade de
Rashomon, uma enorme ruína na Quioto
medieval, vista de longe através de uma
cortina de chuva. Abrigados sob o portão
estão um lenhador (Takashi Shimura) e um
padre (Minoru Chiaki), aos quais se junta um
plebeu (Kichijirô Ueda). O recém-chegado
inicia uma conversa e é informado sobre o
crime e a subsequente prisão do bandido
Tajômaru (Toshirô Mifune).
Enquanto o
lenhador e o padre contam a história,
flashbacks mostram o bandido e a mulher a
explicar o que viram num inquérito - ou o
que pensam ter visto. Depois, uma médium
(Noriko Honma) aparece e canaliza o espírito
do samurai morto, que dá a sua versão dos
acontecimentos. Por fim, o lenhador relata o
que viu. Cada uma das histórias é
radicalmente diferente e, à sua maneira,
totalmente auto-interessada. O bandido
afirma que matou o samurai numa batalha
heróica; a mulher afirma não se lembrar do
momento, mas sugere que esfaqueou o marido
ao ver a sua expressão após a violação; o
samurai afirma ter-se suicidado; e o
lenhador diz que observou uma luta entre o
bandido e o samurai, mas que foi uma luta
confusa entre dois cobardes físicos.
À primeira vista, Rashomon utiliza o
chamado estilo "whodunit": isto é, cria um
mistério, apresenta os suspeitos, apresenta
as provas e pede ao público que tire as suas
próprias conclusões. Mas há um problema.
Kurosawa está mais interessado na natureza
elusiva da verdade do que em capturá-la -
recusa-se a fornecer ao público um relato
definitivo do que aconteceu na clareira.
Filmado num estilo austero e simples,
Rashomon baseia-se em imagens simbólicas
subtis para comunicar as suas ideias sobre a
memória e a verdade. A cortina de chuva,
pintada de preto por Kurosawa para que
aparecesse na câmara, divide o presente do
passado, que é pintado de sol nos
flashbacks. O portão proibitivo simboliza a
porta de entrada do espetador no mundo do
filme, um reino onde nada é o que parece e
onde não se pode confiar em ninguém.
A clareira também é simbólica. Vemo-la pela
primeira vez através dos olhos do lenhador,
quando ele se embrenha nas profundezas da
floresta no início do primeiro flashback.
Nesta sequência bela e sem palavras,
Kurosawa afasta o espectador da realidade e
leva-o para a vegetação febril do
subconsciente; a clareira da floresta é um
espaço encantado no qual o drama da morte do
samurai se desenrola repetidamente, cada vez
de uma forma diferente.
As florestas
sempre tiveram uma associação primordial com
a imaginação humana – como lugares sombrios
situados longe da civilização. No folclore
tradicional de muitas culturas, as florestas
são locais de encontros mágicos e
inexplicáveis. A mais antiga narrativa em
prosa japonesa conhecida, O Conto do
Cortador de Bambu, também conhecido como
Princesa Kaguya, é uma fábula do
século X em que um lenhador solitário e sem
filhos se depara com uma criança
fantasmagórica nas profundezas de uma
floresta.
O filme de Kurosawa remonta
a esse folclore com o seu cenário rural, as
suas personagens arquetípicas e a sua noção
de que aquilo que vemos é moldado
inconscientemente pelos nossos medos e
desejos mais profundos. O filme apresenta
mesmo uma criança abandonada no final, que o
lenhador leva consigo para casa quando a
chuva pára.
Rashômon (trailer)
Akira Kurosawa, 1950
Enfeitando histórias
Kurosawa
afirmou que os seres humanos não conseguem
deixar de embelezar histórias sobre si
próprios, e é isso que acontece na clareira
de Rashomon: quatro pessoas testemunham uma
simples cadeia de acontecimentos, mas
interpretam-na através do filtro da sua
própria imaginação. Cada uma delas
transforma o que viu numa história. No
entanto, estas histórias não são mentiras,
mas truques da mente – de facto, com
Rashomon, Kurosawa sugere que a verdade
objetiva não existe.
Desde o
lançamento do filme em 1950, o dispositivo
narrativo primário de Rashomon foi
utilizado e imitado inúmeras vezes, desde o
remake norte americano de 1964, The
Outrage, um western protagonizado por
Paul Newman, até aos enredos de mérito
duvidoso, Os Suspeitos do Costume
(1995) e Gone Girl (2014). No
entanto, raramente os imitadores se atrevem
a reter uma solução satisfatória, como faz
Kurosawa no final da sua obra-prima. Nunca
descobrimos quem matou o samurai, nem o que
realmente aconteceu entre a mulher e o
bandido, mas vemos as personagens mudarem à
medida que analisam as suas próprias
recordações.
O efeito Rashomon
O "efeito Rashomon" entrou na linguagem como uma abreviatura para qualquer situação, na arte ou na vida, em que a verdade permanece indecisa porque ninguém consegue chegar a acordo sobre o que aconteceu. O que é certo é que Rashomon foi um dos filmes mais influentes do século XX. Estabeleceu recordes de bilheteira nos países ocidentais para um filme legendado e atuou como uma porta de entrada através da qual os espectadores ocidentais puderam olhar pela primeira vez para o mundo sedutor e desconhecido do cinema japonês. E cada um desses espectadores terá visto algo diferente.
Akira
Kurosawa,
Realizador
Kurosawa foi o
primeiro realizador
japonês a ganhar
popularidade no
Ocidente. Os seus filmes
Rashomon,
Seven Samurai e
Yojimbo foram
refeitos como westerns (The
Outrage, em 1964,
The Magnificent Seven,
em 1960, e A Fistful
of Dollars, em 1964,
respetivamente).
Kurosawa acabou por ser
mais apreciado pela
crítica na Europa e nos
EUA do que no seu país
natal.
Filho de um
oficial do exército,
Kurosawa estudou arte
antes de iniciar a sua
carreira no cinema, que
o levou a desenvolver
uma sensibilidade
parcialmente
ocidentalizada.
Experimentou o drama de
tribunal, o thriller
criminal, o film noir e
o melodrama médico.
Continuou a fazer filmes
até à sua morte em 1998.