Falando de Cinema
Vertigo, 1958
A carreira do
realizador Alfred Hitchcock foi um duelo de
50 anos com o seu público. Quanto mais se
pensava que se sabia sobre o seu trabalho,
mais ele usava esse conhecimento contra
o próprio público. Utilizava dispositivos estruturais,
reviravoltas narrativas e outros truques
para dar ao espectador algo que nunca tinha
visto antes. Enquanto alguns realizadores
procuravam compreender o significado da arte
ou a essência das relações humanas,
Hitchcock era o grande trapaceiro. O público
nunca podia ter a certeza do que viria a
seguir.
Vertigo joga os mesmos jogos
que o resto do catálogo de Hitchcock, mas
acabou por se destacar como algo mais
complexo. É a história de um polícia
reformado, John "Scottie" Ferguson (James
Stewart), que é envolvido numa investigação
sobre o comportamento misterioso de
Madeleine (Kim Novak), a mulher do antigo
colega de faculdade Gavin Elster (Tom
Helmore). Ele fica obcecado por ela,
acrescentando uma intensidade emocional ao
habitual espetáculo de magia do filme.
A Loira de Hitchcock
Como
realizador, Hitchcock utilizou um certo tipo
de personagem feminina nos seus filmes com
tanta frequência que ela acabou por ganhar o
seu próprio apelido: "A Loira de Hitchcock".
Embora isso o tenha deixado exposto a
acusações de misoginia, também é verdade que
os seus filmes tinham mais papéis principais
para mulheres do que muitos em Hollywood. A
loira de Hitchcock era culta, elegante e
inteligente, mas também gelada e
inicialmente resistente aos encantos do
herói masculino. No decurso do filme, as
barreiras da personagem seriam quebradas e
ela acabaria por ficar encantada com o
herói, perdendo ligeiramente o seu
individualismo. O próprio Hitchock indicou
que as louras eram ideais para criar
suspense cinematográfico, dizendo numa
entrevista televisiva de 1977: "As louras
fazem as melhores vítimas. São como a neve
virgem que mostra as pegadas
ensanguentadas".
Hitchcock pode ter
montado sequências mais sangrentas,
especificamente orientadas para a criação de
tensão, mas o subtexto de abuso emocional
nalgumas sequências deste filme, juntamente
com a noção de que se trata de uma
autoanálise de Hitchcock relativamente à
forma como trata as mulheres no cinema,
torna-a tão perturbadora como tudo o que
alguma vez filmou.
Vertigo (Trailer)
Alfred Hitchcock, 1958
A estrela caída
Outro tema
comum nos filmes de Hitchcock é a exploração
do conceito de estrela de cinema e a forma
como este afecta a narração de uma história,
mais especificamente a forma como o
estrelato pode ser manipulado para
surpreender o público. O exemplo mais famoso
é Psycho, em que a estrela Janet Leigh é
assassinada ao fim de apenas 30 minutos,
manipulando as suposições do público sobre a
forma como as histórias com estrelas em
papéis principais normalmente progridem, a
fim de o chocar. Mas enquanto a reviravolta
em Psycho é estrondosa e inevitável, em
Vertigo é subtil e lenta, e o seu efeito
depende da estrela escolhida para
interpretar Scottie.
A escolha de
James Stewart para o papel principal afeta
profundamente a realização e o impacto do
filme; acrescenta uma camada textual extra
de dissonância ao ato final. A imagem de
Stewart como ator, desde o início da sua
carreira, incluindo papéis anteriores em
filmes de Hitchcock como Janela
Indiscreta (1954) e O Homem que Sabia
Demais (1956), sempre foi a do homem
incorruptível, decente e simpático até à
exaustão. John "Scottie" Ferguson começa
como um bom homem, um personagem típico de
Stewart, mas acaba como um homem perdido no
desespero sexual, com a mente arruinada pela
tragédia. Ao fazer James Stewart passar por
esta transformação, Hitchcock não está
apenas a desfazer um homem, está a desfazer
um ícone do ecrã. O que pensamos conhecer da
personagem de Stewart torna a psicose de
Ferguson muito mais dolorosa de ver, e o seu
desenlace afeta-nos muito mais
profundamente. A representação visual deste
processo nunca é mais clara do que numa
sequência de sonho que vê a cabeça
desencarnada de Stewart a descer em espiral
para um abismo. A sua imagem habitualmente
limpa é distorcida à medida que o vento lhe
desarranja o cabelo e a expressão. Ele
parece perdido.
Um thriller distorcido
Vertigo é um thriller habilmente elaborado, mas com perspetivas distorcidas. O plano assassino do vilão é bem-sucedido, a história de amor é envenenada por mentiras e o protagonista fica emocional e fisicamente destroçado. É, sem dúvida, o filme mais negro que o realizador já fez. É um filme de Hitchcock sem obrigações hollywoodianas, pois o realizador procura uma forma mais rica de terror – não apenas para chocar, repelir ou inquietar o público, mas para o perturbar, para pegar em tudo o que pensam saber sobre o seu estilo de realização e corrompê-lo para revelar algo novo. Em Vertigo, Hitchcock desnuda um pouco mais da sua alma para que possa rodar a faca um pouco mais fundo.
Alfred
Hitchcock, Realizador
Hitchcock nasceu em
Londres em 1899. Começou
a trabalhar na indústria
cinematográfica como
cenógrafo. A sua
primeira oportunidade de
realizar surgiu com o
filme incompleto
Number 13 e, em
1925, com The
Pleasure Garden.
Depois de ganhar fama
como realizador na
Grã-Bretanha com filmes
como The Lady
Vanishes (1938),
Hitchcock mudou-se para
Hollywood em 1940,
quando foi contratado
por David O. Selznick
para realizar uma
adaptação de Rebecca,
de Daphne Du Maurier.
Seguiu uma carreira de
30 anos em Hollywood,
realizando clássicos como
Janela Indiscreta
(1954), North by
Northwest (1959),
Psycho e Os
Pássaros.
Morreu em 1980, aos 81
anos de idade.