Falando de Cinema

Os 400 Golpes, 1959

Os críticos escreveram muito sobre "Os 400 golpes". De facto, o realizador do filme, François Truffaut, era um dos críticos de cinema mais conhecidos de França antes de decidir mostrar ao mundo como achava que os filmes deviam ser feitos. Ele e os outros cineastas que lideraram a Nova Vaga francesa (Nouvelle Vague) no final dos anos 50 e início dos anos 60 acreditavam que um realizador era um autor e a câmara uma caneta (caméra-stylo).

Semiautobiografia

Os 400 Golpes é, em parte, um livro de memórias dolorosamente pessoal que descreve a infância parisiense de Truffaut, com alguns nomes e acontecimentos alterados, não para disfarçar as vítimas, mas para expressar algo novo e verdadeiro. O jovem Truffaut transforma-se em Antoine Doinel (Jean-Pierre Léaud), um jovem arruaceiro que é constantemente acusado de distorcer os factos. "Os teus pais dizem que estás sempre a mentir", diz o psiquiatra enviado para o investigar. "Às vezes digo-lhes a verdade e eles não acreditam", responde o rapaz, "por isso prefiro mentir".

Antoine lê as obras de Balzac e, quando adapta a obra do autor para um trabalho escolar, utilizando os pensamentos e sentimentos para exprimir as suas próprias emoções, é castigado por um professor. É um ato de homenagem condenado como plágio, e a resposta de Antoine é um ato de delinquência: rouba uma máquina de escrever do local de trabalho do padrasto.

Les Quatre Cents Coups (trailer)
François Truffaut, 1959

Recriar a adolescência

A rebeldia juvenil é muitas vezes romântica, mas Les quatre cents coups não é uma obra nostálgica. Não olha para a adolescência do ponto de vista de um adulto, mas recria-a no tempo presente, tal como é sentida, com toda a sua agonia, incerteza, alegria e insensibilidade. O enigmático título do filme vem da frase francesa faire les quatre cents coups, que significa "contrariar o senso comum", o que Antoine certamente faz. Não rouba a máquina de escrever para a usar, mas para a vender e financiar a sua fuga de Paris. Truffaut não teme colorir o seu protagonista como um mercenário, mas também como um amante da literatura.

Quando Antoine pensa duas vezes sobre o roubo, tenta devolver a máquina de escrever, mas é apanhado. O padrasto (Albert Rémy) decide entregá-lo à polícia e o rapaz passa a noite numa cela com prostitutas e ladrões. A polícia tira uma fotografia e o filme pára no instante em que a fotografia – e Antoine – é captada. "Por aqui, fugir já é suficientemente mau", diz um recluso da instituição para onde Antoine acaba por ser enviado, "mas ser apanhado é pior".

Truffaut espelha esta imagem congelada com o plano final do filme, que capta Antoine no ato da fuga. Dirige-se para o mar, que nunca viu, e corre por estradas rurais até chegar à praia. A câmara, tal como o rapaz, está em constante movimento, acompanhando a sua fuga. Antoine corre para a rebentação, mergulha o dedo do pé no oceano, depois volta-se para terra e olha diretamente para a câmara. Truffaut congela a imagem e faz um zoom no rosto de Antoine.

É um período ousado e ambíguo no final do primeiro capítulo da vida de Antoine (Truffaut continuaria a narrar as aventuras da personagem numa série de filmes). Quando chega à beira da água, não consegue correr mais. O momento final, congelado, em que volta para trás, parece dizer que, longe de ter escapado, ficará para sempre capturado. A impressão que fica é a de uma esperança misturada com derrota.

Fuga para o cinema

Antoine encontra outro meio de fuga: o cinema. Entra numa sala de cinema sempre que pode, para se perder na escuridão das cadeiras e nas imagens do ecrã, tal como fazia o jovem Truffaut.

É aqui que a vida da personagem se cruza irresistivelmente com a vida do seu criador. Há uma sensação constante de que o realizador está a tentar explorar ou exorcizar o seu próprio passado, redefinindo-o com planos e cenas emprestadas de outros filmes, como Zéro de conduite (1933) e Little Fugitive (1953), da mesma forma que Antoine pede emprestado a Balzac para se compreender a si próprio. Não é apenas a paixão pelo cinema que Antoine e Truffaut têm em comum. Antoine não sabe quem é o seu pai biológico e vive com um padrasto distante, tal como o realizador viveu na sua juventude. Antoine foge de casa, como Truffaut fez quando tinha onze anos. Antoine tenta convencer o professor de que a sua mãe morreu (uma das suas mentiras mais escandalosas). O jovem Truffaut afirmava que o seu pai tinha sido preso pelos alemães.

Todos os filmes incluem mentiras escandalosas e evocam mundos de ilusão e fingimento povoados por pessoas que atuam como alguém que não são. Mas o filme de estreia de Truffaut prova que, quando arranjadas para um determinado fim e relacionadas com o coração, as mentiras podem revelar e iluminar a verdade de uma forma que os factos nus não conseguem. Foi esta verdade, bem como a promessa de fuga, que entusiasmou os cineastas franceses que mergulharam na “Nova Vaga”.

François Truffaut, Realizador
Foi um crítico de cinema corajoso que agarrou numa câmara e realizou o seu próprio filme. François Truffaut fez isso mesmo com Os 400 Golpes, e a sua coragem deu frutos – o filme foi aclamado como uma obra-prima, e Truffaut continuou a realizar mais de 20 filmes antes da sua morte em 1984. Como jornalista que escrevia para a influente revista de cinema Cahiers du Cinéma, Truffaut foi pioneiro da teoria do autor, uma escola de pensamento controversa que identificava o realizador como o autor do filme. Truffaut criticava a maioria dos filmes franceses contemporâneos, ganhando a alcunha de "O Coveiro do Cinema Francês". Mas depois de Os 400 Golpes, a sua reputação transformou-se.