Falando de Cinema
La Dolce Vita, 1960
Em abril de
1953, o corpo parcialmente vestido de uma
jovem mulher foi descoberto numa praia perto
de Roma. Wilma Montesi ter-se-ia afogado
acidentalmente ou cometido suicídio, ou
teria sido assassinada? A polícia
investigou, assim como os media vorazes de
Itália. Os boatos e as teorias da
conspiração transformaram-se num escândalo
nacional, à medida que o submundo corrupto e
hedonista da Roma do pós-guerra era
iluminado pelas lâmpadas dos paparazzi da
cidade. Políticos, estrelas de cinema,
gangsters, artistas, prostitutas,
aristocratas em vias de extinção – viviam
la dolce vita, "a doce vida", um
turbilhão de drogas, orgias e depravação
geral que tinha ficado tragicamente fora de
controlo.
La Dolce Vita
tornou-se o título da sátira de Federico
Fellini a este período turbulento da
história da sua amada Roma. O filme contém
uma referência velada ao caso Montesi na sua
cena final, quando um grupo de personagens
sai de uma orgia numa casa de praia e
encontra uma raia-manta morta na costa, uma
referência metafórica a Wilma Montesi.
Juntam-se à volta do cadáver à luz do
amanhecer, com o olho do monstro marinho a
olhar para eles de forma acusadora.
Sete pecados
La Dolce
Vita foi lançado sete anos após a morte
de Wilma Montesi. O filme passa-se nas sete
colinas de Roma e a sua narrativa divide-se
em sete noites e sete madrugadas. Se
procurarmos bem, também descobrimos que
contém os sete pecados capitais e alusões à
história bíblica dos sete dias que Deus
levou para fazer o mundo. A religião está no
centro da obra de Fellini. Quando o herói do
filme, um jornalista noturno chamado
Marcello Rubini (Marcello Mastroianni), se
apaixona pela bela estrela de cinema Sylvia
(Anita Ekberg), diz-lhe: "Tu és a primeira
mulher no primeiro dia da Criação. És mãe,
irmã, amante, amiga, anjo, diabo, terra,
lar".
Cabe ao espectador decidir o
significado das conotações religiosas de
La Dolce Vita e da aparente obsessão
pelo número sete. O que é mais certo é que o
filme está preocupado com a natureza da
relação dos homens com as mulheres. Marcello
passa as suas noites na Via Veneto, a rua de
Roma dos anos 50 onde há clubes noturnos,
cafés e deboche depois do anoitecer, à
procura da felicidade sob a forma de um amor
idealizado. Há várias candidatas, incluindo
a sua noiva suicida, Emma (Yvonne Furneaux),
e a misteriosa Maddalena (Anouk Aimée). Mas
é só quando a Sylvia de Ekberg chega à
cidade, no meio de um tumulto de adulação e
publicidade, que Marcello vislumbra a
perfeição. Na cena mais célebre do filme,
Sylvia vagueia pelas águas da Fontana di
Trevi depois de uma longa e carnavalesca
noite na cidade. Ela chama Marcello para a
seguir e o espectador vê Sylvia através dos
olhos de Marcello: a mulher ideal, com um
brilho sobrenatural, uma visão de luz na
cidade escura. Mas a madrugada chega e o
feitiço mágico da noite é quebrado, no
momento em que Sylvia unge a cabeça de
Marcello com a água da fonte. No dia
seguinte, Sylvia deixa Roma e Marcello tem
de recomeçar a sua busca.
O caos das
deambulações nocturnas de Marcello
reflecte-se na estrutura episódica e sinuosa
da história do filme. As suas aventuras
levam-no por toda a cidade, desde um campo
onde duas crianças afirmam ter tido uma
visão da Virgem Maria – o arquétipo da
mulher esquiva e idealizada – até à
felicidade doméstica da casa de Steiner.
Steiner (Alain Cuny) é o melhor amigo de
Marcello e o epítome de tudo o que Marcello
inveja: Steiner é estável, tem um casamento
feliz com dois filhos perfeitos e goza de um
equilíbrio entre conforto material e
realização intelectual. Quando Marcello
visita a casa de Steiner, ascende do
submundo sombrio das ruas, discotecas e
bares de cave, para uma espécie de paraíso.
La Dolce Vita (Trailer)
Federico Fellini, 1960
Ilusão de felicidade
Mas, tal como
Sylvia e a Virgem Maria se revelam ilusões,
a felicidade doméstica de Steiner é também
uma mentira, como Marcello descobre quando
Steiner lhe diz: "Não sejas como eu. A
salvação não se encontra entre quatro
paredes". O facto de não haver conforto nem
numa vida doméstica protegida e intelectual,
nem na "vida doce" hedonista, é o enigma
existencial com que Marcello se debate
perante o subsequente suicídio de Steiner.
Após um lapso de tempo não especificado,
vemos Marcello na casa de praia em
Fiumicino, propriedade do seu amigo
Riccardo, onde a festa que dura toda a noite
se transforma num caos. Quando a manhã se
aproxima, Marcello cambaleia pela praia,
onde o espera o olho fixo da raia morta.
A cena final de La Dolce Vita
contém uma segunda alusão. O pescador que
puxa a raia para fora do mar diz que o
leviatã inchado e apodrecido está morto "há
três dias". Na Bíblia, este é o mesmo
período de tempo que Jesus passa no túmulo.
La Dolce Vita
é um carnaval de imagens e símbolos
católicos romanos, muitos dos quais
controversos na sua utilização. A sequência
de abertura, em que uma estátua dourada de
Cristo sobrevoa um antigo aqueduto romano,
pendurada benignamente de um helicóptero,
com Marcello a segui-la num segundo
helicóptero, causou indignação quando o
filme foi exibido pela primeira vez.
Apesar de duas figuras de Cristo (a estátua
e a raia manta) marcarem a narrativa, não
oferecem esperança ou salvação a nenhuma das
personagens. De facto, Fellini associa
constantemente o mito religioso à desilusão.
Marcello procura a sua Eva, a primeira
mulher do primeiro dia da Criação, uma
figura angelical não contaminada pelas
corrupções de la dolce vita ou de
qualquer experiência terrena. "Não acredito
no teu amor agressivo, pegajoso e
maternal!", diz ele a Emma durante a sua
interminável e recorrente discussão. "Isto
não é amor", grita-lhe ele, "é
brutalização!" E assim, sempre que ele
mergulha de novo no caos da noite romana,
sabe que Eva não existe realmente; tudo o
que está a fazer é tentar esquecer o que
sabe.
Federico
Fellini, Realizador
Nascido em Rimini,
Itália, em 1920,
Federico Fellini
mudou-se para Roma aos
19 anos. Foi estudar
Direito e ficou a fazer
filmes que
imortalizariam a cidade.
As suas primeiras
aventuras como repórter
e colunista de mexericos
expuseram-no ao mundo do
espetáculo e, em 1944,
tornou-se aprendiz do
famoso realizador
Roberto Rossellini. Na
década de 1950, Fellini
fez os seus próprios
filmes e estabeleceu-se
como um dos artistas
mais controversos de
Itália.
A obra de
Fellini combina imagens
barrocas com a vida
quotidiana da cidade,
retratando
frequentemente cenas de
excesso. Fellini era
fascinado pelos sonhos e
pela memória, e muitos
dos seus últimos filmes
enveredaram pelo domínio
da fantasia psicológica.