Falando de Cinema

Dr. Strangelove, 1964

Em 1963, Stanley Kubrick decidiu fazer um filme sobre a Guerra Fria, que estava a aquecer na altura. O Ocidente e os seus inimigos do Bloco de Leste tinham estado fechados numa competição de olhares durante quase duas décadas e as superpotências estavam a ficar nervosas; se um dos lados pestanejasse, toda a gente morria num holocausto termonuclear. Esta era a base da "destruição mútua assegurada", a estratégia militar para a paz que estava a começar a soar como uma promessa sombria de esquecimento. A Crise dos Mísseis de Cuba tinha sido evitada um ano antes, mas por pouco – de certeza que o apocalipse estava a chegar?

Sátira da Guerra Fria

Quando Dr. Strangelove (Dr. Estranhoamor) estreou para um público desprevenido em janeiro de 1964, Kubrick convidou as audiências a verem este cenário de fim do mundo no grande ecrã – e esperava que se rissem. Originalmente, o cineasta tinha a intenção de produzir um thriller direto baseado em Red Alert, o romance de Peter George de 1958 sobre um oficial da Força Aérea dos EUA que enlouquece e ordena aos seus aviões que ataquem a Rússia. Mas, ao trabalhar no argumento com o escritor Terry Southern, Kubrick achou a política da guerra moderna demasiado absurda para o drama; sentiu que a única forma sã de transmitir a insanidade da auto-destruição acidental era uma farsa.

No argumento de Kubrick e Southern, o enredo de Red Alert ganha um toque cómico de pesadelo. O louco do romance torna-se Jack D. Ripper (Sterling Hayden), um general americano que atribui a sua impotência sexual a uma conspiração comunista para envenenar o abastecimento de água com fluoretação. Ripper envia uma frota de bombardeiros para destruir a União Soviética, e depois fica à espera do Armagedão.

Dr. Strangelove (Trailer)
Stanley Kubrick, 1964

Metáforas sexuais

Dr. Strangelove é uma sátira política, mas é também uma comédia sexual sobre a relação erótica entre os homens e a guerra – o "estranho amor" do título. O filme, que tem como subtítulo How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb (Como aprendi a deixar de me preocupar e a adorar a bomba) abre com a balada romântica Try A Little Tenderness e termina com Vera Lynn a cantar We'll Meet Again sobre uma montagem orgásmica de explosões atómicas, desencadeada pela bomba nuclear pilotada pelo Major "King" Kong (Slim Pickens), que faz disparar o Dispositivo do Juízo Final dos russos. As imagens a preto e branco de Kubrick estão repletas de ereções feitas pelo homem, desde bombas nucleares, torres de armas e pistolas até ao charuto do General Ripper. "Não evito as mulheres", explica ele ao Capitão de Grupo Mandrake (Peter Sellers) da RAF, soprando nuvens de fumo em forma de cogumelo, "mas nego-lhes a minha essência".

Este é um mundo de homens, em que toda a gente se diverte com a destruição em massa. O sombrio Dr. Strangelove (Peter Sellers novamente) empunha um pequeno cigarro, que pode dizer-nos tudo o que precisamos de saber sobre as suas motivações. Anteriormente conhecido como Dr. Merkwürdigliebe, Strangelove é um cientista alemão emigrado. Os modelos para Strangelove eram cientistas de foguetões nazis, agora nos EUA, como Wernher von Braun. Tem um braço mecânico com vontade própria – sempre que se fala de massacre em massa ou de eugenia, este levanta-se involuntariamente numa saudação nazi. Strangelove tem dificuldade em manter esta ereção particular sob controlo e, perante a perspetiva de o mundo explodir, salta da cadeira de rodas com um grito de alegria. "Mein Führer", ejacula, "consigo andar!" Ele está literalmente ereto: sexualmente desperto, potente e prestes a ver o seu plano nazi para uma raça suprema de humanos, onde há 10 mulheres para cada homem, ser posto em ação.

Há apenas uma personagem feminina no filme, Tracy Reed, que interpreta Miss Scott, a amante-secretária do General Turgidson e também a "Miss Foreign Affairs" da edição de junho de 1962 da Playboy, que o Major Kong é visto a ler no cockpit no início do filme. Naquela que foi uma das várias referências "internas" ao longo do filme, a edição dos Negócios Estrangeiros coberta pelas suas nádegas continha o artigo de Henry Kissinger sobre "Strains on the Alliance". A mistura de conotações sexuais e militares persiste entre Miss Scott e o General Turgidson. Quando o seu encontro é suspenso devido à crise, ela é instruída a esperar: "Comece a sua contagem decrescente e o velho Bucky estará de volta antes que possa dizer... Blast Off!"

Muitos dos nomes das personagens remetem para temas de guerra, obsessão sexual e domínio, desde o óbvio Jack D. Ripper (Jack, o Estripador, assassino de prostitutas) ao embaixador Alexi de Sadesky (Marquês de Sade). As bombas também foram baptizadas com os nomes "Hi There" e "Dear John", significando o início e o fim de uma relação romântica.

Egos de superpotência

Para além de Mandrake e Strangelove, o mercurial Sellers desempenha um terceiro papel: O Presidente Merkin Muffley (outra insinuação sexual), que tenta gerir a crise a partir da sua sala de guerra. Neste vasto e ecoante fórum, o líder dos EUA reúne-se com uma cabala exclusivamente masculina de diplomatas, soldados e conselheiros especiais para decidir o futuro da humanidade.

A peça cómica central do filme envolve um telefonema de Muffley a Kissoff, o primeiro-ministro soviético, para o avisar do ataque iminente; Kissoff está bêbado numa festa e a conversa descamba em disputas mesquinhas. O monólogo de Sellers é hilariante, mas também aterrador, porque o "telefone vermelho" só recentemente se tinha tornado uma realidade. A linha direta entre Washington e Moscovo foi criada em 1963 e o filme de Kubrick levou o conceito à sua conclusão lógica: uma Guerra Fria reduzida à disputa pelo domínio dos egos feridos de dois homens. "É claro que é uma chamada amigável", diz Muffley ao recetor, "se não fosse amigável, provavelmente nem a terias recebido". Estas piadas devem ter gelado o sangue dos espectadores contemporâneos e ainda hoje enervam.

Uma discussão menos sofisticada ocorre mais tarde no filme, entre o General "Buck" Turgidson (George C. Scott), que masca pastilhas elásticas, e o embaixador russo (Peter Bull): a Guerra Fria reduzida ainda mais, a uma luta de miúdos da escola. "Meus senhores, não podem lutar aqui", diz um Muffley horrorizado, "Isto é a Sala de Guerra!" É tolo, inteligente e, no fundo, cheio de raiva. Kubrick odiava claramente estas personagens; os homens em Dr. Strangelove são um bando de palhaços, patéticos e iludidos, e o realizador tencionava originalmente terminar o filme com uma batalha épica de pastéis de nata. Filmou a sequência, depois mudou de ideias e trocou as tartes por ogivas nucleares, para o caso de alguém pensar que estes palhaços podiam ser inofensivos.

Stanley Kubrick, Realizador
Kubrick passou os seus primeiros anos de vida como fotógrafo e como jogador de xadrez. Estes dois interesses – imagens e lógica – informariam a sua carreira como realizador de cinema, que começou em 1953 com Fear and Desire. Kubrick lançou o seu olhar analítico sobre vários géneros – épico histórico (Spartacus), comédia (Dr. Strangelove), ficção científica (2001: Uma Odisseia no Espaço), drama de época (Barry Lyndon), terror (The Shining) – dando-lhes um tema unificador da fragilidade humana. Talvez estivesse menos interessado nos seres humanos do que nas máquinas, não apenas no hardware do cinema, mas também na obsessão da sociedade pelo progresso tecnológico. O seu projeto final não realizado, o épico de ficção científica A.I. Artificial Intelligence, teria sido a sua última palavra sobre este assunto. Foi filmado por Steven Spielberg em 2001, dois anos após a morte de Kubrick.