Falando de Cinema

Pan’s Labyrinth, 2006

Os contos de fadas abundam com o sinistro e o macabro. O bem vence invariavelmente o mal, mas a batalha é dura e o mal não é desprovido de poder. Parece, então, apropriado que um dos realizadores que melhor captou a essência do conto de fadas no cinema tenha feito o seu nome no terror. O realizador mexicano Guillermo del Toro aperfeiçoou o seu talento para inquietar o público durante mais de uma década antes de realizar Pan's Labyrinth. À maneira dos melhores contos de fadas, ele consegue encontrar uma forma de desafiar a inocência e de a celebrar.

Fantasia versus realidade

Pan's Labyrinth consiste em duas narrativas que se desenrolam ao mesmo tempo. Uma conta a história de Vidal, um capitão do exército nacionalista do general Franco, enviado para as montanhas para reunir os remanescentes dos republicanos derrotados no rescaldo da Guerra Civil Espanhola.

A outra é a história da sua enteada, Ofelia. Trata-se de uma rapariga muito perdida no mundo e que, através da sua imaginação ou por magia (o filme deixa habilmente esta questão em aberto), escapa para um reino de fantasia onde assume o espírito de uma princesa fada há muito falecida.

Um fauno dá-lhe três tarefas a cumprir antes de lhe ser permitido ocupar o seu lugar de direito no reino mágico. Vidal e Ofelia podem ser considerados verdadeiros crentes, cada um deles plenamente convencido da validade do mundo que construíram à sua volta. Vidal acredita na causa de Franco e admite que está a caçar os retardatários "por opção". É um homem sem dúvidas, tal como Ofelia o é quando enfrenta o horror do Homem Pálido devorador de crianças para passar o segundo teste do fauno. Em Pan's Labyrinth, o mal está tão convencido da sua justiça como o bem. Vidal não é hipócrita nem cobarde e avança para a batalha sem medo. Até diz a um camarada que duvida que "é a única maneira de morrer". Ofelia mostra a mesma convicção quando tenta realizar as tarefas do fauno. A sensação de que as más qualidades de Vidal refletem as boas qualidades de Ofélia acrescenta uma complexidade aos acontecimentos que se desenrolam.

Se o reino de fantasia de Ofelia é real ou não, cabe ao espectador decidir. Cabe também ao público decidir em que mundo acredita mais: O de Ofelia ou o de Vidal. Ambas as histórias são tão texturizadas e vivas – veja-se a  cenografia do Grand Guignol (um pequeno teatro na zona de Pigalle, em Paris, que funcionou entre 1867 e 1967, colocando no palco histórias de susto, perigo, horror…) que é igualada pela especificidade dos aposentos de Vidal e da sua rotina de barbear assustadoramente controlada. É aqui que reside o sucesso de Pan's Labyrinth – não apenas como um conto de fadas distorcido, mas também como um conto que explora a tristeza da necessidade de escapar para um mundo de fantasia.

O filme explora o medo tradicional do padrasto malvado, um elemento básico dos contos de fadas. Vidal é indiferente a Ofelia e até insensível para com a sua mãe grávida, Carmen; está a usar a sua mulher apenas como um meio para gerar um filho. Com a mãe acamada, a relação mais próxima de Ofelia com um adulto é com a governanta Mercedes, que cuida dela quando a mãe morre no parto. Neste aspeto, o filme subverte o conto de fadas tradicional, porque enquanto Vidal se enquadra muito bem no modelo tradicional do padrasto malvado, o papel de Mercedes mostra que a família não é apenas sangue, mas tudo o que funciona quando se trata de apoio e afeto.

Pan’s Labyrinth (trailer)
Guillermo del Toro, 2006

Quebrar as regras

Obedecer às regras, mesmo que moralmente erradas, é parte integrante da visão do mundo de Vidal. Tortura um partidário para obter informações e, quando o médico acaba com o sofrimento do moribundo, Vidal fica genuinamente perplexo. Quando lhe perguntam por que razão desobedeceu, o médico responde com desdém: "Capitão, obedecer - assim mesmo - por obedecer, sem questionar, é algo que só pessoas como tu fazem". Nesse momento, Vidal dispara sobre o médico, mesmo sabendo que, ao fazê-lo, está a pôr em risco a vida da sua mulher.

Mais tarde, no conto de fadas, Ofelia recebe uma ordem assustadora dada pelo fauno. Num dos momentos mais fortes do filme, perguntamo-nos se ela pode realmente provar que é melhor do que Vidal, e se o bem ainda pode vencer o mal.

Uma crítica comum aos filmes de fantasia é o facto de lhes faltar uma base humana. Pan's Labyrinth é uma réplica a isto, um filme profundamente enraizado na emoção, mesmo quando sonha com monstros aterradores.

Guillermo del Toro, Realizador.
Guillermo del Toro nasceu em Guadalajara, México, em 1964. A sua primeira longa-metragem, Cronos, foi lançada em 1992 e revelou-se um sucesso suficiente para que o produtor Harvey Weinstein lhe concedesse um orçamento de 30 milhões de dólares para realizar Mimic, um filme de terror de estúdio ambientado nos Estados Unidos. Foi também por esta altura que o seu pai foi raptado e del Toro foi forçado a pagar um grande resgate pela sua libertação. Del Toro alcançou o sucesso em Hollywood com o franchise de terror Hellboy, bem como com a realização de dois filmes na Espanha da era franquista, El espinazo del diablo e Pan's Labyrinth, com grande aclamação da crítica. Mais recentemente, realizou a ação-aventura de influência kaiju Pacific Rim.